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O BLOG DO V-P

IMPUTAÇÃO GRACIOSA A SUPOSTO USO DE MEU HIPERBÓLICO E PARADOXAL NARIZ

Graciosa opinião, outro dia, reportou-se a um cogitável meu bom gosto na escolha e uso de perfumes.

Considero, de fato, graciosa essa opinião, não apenas porque gratuita (i.e., sem fundamento na realidade das coisas), mas também porque faceciosa. Tolero esse tipo de graça com meus defeitos pessoais, especialmente porque eu próprio me divirto com eles. Explicar-me-ei um pouco melhor.

A regular distribuição de virtudes e defeitos é um mistério na economia da Providência: quando nasci —valho-me aqui da fidúcia que deposito na narrativa de meus pais—, já vinha eu provido de narícula incoadunável com as simetrias geométricas por então conhecidas no universo criado.

Segundo relação de uma tia, a Walderez (história que dela ouvi com repetição periódica, de maneira sempre substancialmente unívoca), três médicos foram unânimes em tranqüilizar meus amoráveis pais quanto à possibilidade aspiratória do surpreendente mostrengo nasal do, de resto, pequeno filho, ainda que —prognose depois felizmente frustrada— um desses Hipócrates haja guardado prudente reserva acerca dos riscos expiratórios da impressiva narina do neonato, muito receoso o médico de que, especialmente em caso de súbita exalação, houvesse risco de lesões pessoais e danos materiais no indefeso entorno.

Uma de minhas queridas avós, a Nagibe, noticiou-me, firmando-se em fontes que jurava idôneas, nunca antes, na Maternidade São Paulo, em que nasci no ano da Graça de 1950, tantas visitas e interjeições de espanto freqüentarem e referirem um agregado nasal de recém-nascido. Eu era, enfim, o primeiro neto e portento da família, e, conforme registrava a avó, merecia as muitas e protocolares ostentações, que se prolongaram, sob vistas mais curiosas do que amantes, por meses e meses a fio. Essa minha avó paterna sempre se orgulhou do neto, a quem aconselhava (e dizia ser isto um favor ao Bem Comum) que nunca se resfriasse. Cautelosa, a nossa Nagibeta, e prendada na arte da agulha, deu-me essa bela senhora, com carinho invicto, meu primeiro lencinho, feito de algodão puríssimo, com forma retangular, medindo 80 cm em dois lados e 95 cm nos outros dois. Minha tia Yvone, a ela, irmã mais velha de meu pai, coube a honra de aumentar os bolsos traseiros de minhas calças, para que, adrede, ali coubesse o lencinho. Quando tinham de lavá-lo (o que sempre exigia não fosse tempo de racionamento de água), isto era um malefício para mim: não só se dava que eu não saía de casa até que me restituíssem o pano, senão que o excesso de anil aplicado ao processo de alvejamento do lenço me provocava recorrentes esternutações. De modo que era manifesto o círculo vicioso: devolvido o lencinho, dele exalava algum numinoso odor, e dá-lhe então espirro insistente; isso me fazia anodoar o pano com perdigotos, e, dessa maneira, quanto mais rapidamente eu enxovalhava o lenço com borrifos, mais brevemente ele se lavava e sofria nova incidência de anil, propiciando mais e renovadas esternutações. Graças a isso, eu permanecia longo tempo em casa, o que me permitiu aprender um pouquinho do idioma catalão, estudar a geografia de Andorra La Vella e formar uma coleção supimpa de embalagens roxas de anil Colman.

Menino, com cabelo à Garcez, na escola primária, lá por mais de uma vez fui suspeito de, nas fossas de meu festejado septo, abrigar pequenos bilhetes amorosos (que me teria remetido, com o desenho de flechados corações, a Adalgisa, menina míope, míope de todo, e estrábica também). Certa ocasião, fui mesmo parar na sala da Diretoria, por indícios circunstanciais de, com esforçada aspiração, ter, propositadamente, mitigado o quantum da prudente reserva aérea de uma cabine local de elevador, com risco de desfalecimento para os utentes do veículo. Suspeitas e acusações injustas (: quanto aos bilhetes da Adalgisa, esclareço, eu os guardava no meio do lencinho, em que, apesar das buscas pessoais dos bedéis, nunca foram encontrados). Increpações, além disso, infrutíferas, pois não diminuíram milésimo de côvado de meu nariz. Mocinho já, com meus 18 ou 19 anos, quando me plantava, sob o sol, à espera, na Praça do Patriarca, do ônibus que me levaria para a Vila Madalena onde morava, sempre via um bando de meninos e meninas, de seus sete ou oito anos, correrem para a fila, abrigando-se, à sombra da pouco fidalga minha narícula, dos por então castigantes ardores do verão.

Não bastava isso, não, não bastava não! Calha que esse meu aduncado nariz —posto ao concerto de um libanês genético estilo— tem um defeito funcionário paradoxal: desproporcionado por sua extensão às harmônicas linhas do universo, opera mal; não, não é que opera mal, atua pessimamente, ou por outra: não cheira. Por uma dessas penas compensatórias das do Purgatório, sobre, pois, ter de comigo levá-lo, esse nariz grandioso, a toda parte, não cheira, não sente cheiro o estúpido. De modo que, algum perfume agradável suponha-se eu use, se é mesmo agradável, isso tenho de confiar no juízo alheio, e, para mim, será apenas indício de que a Providência age com misericórdia, recompensando-me das cruzes de levá-lo em meio à face.

Muitos sabem disto: fui ter, outro dia, com um cirurgião, incumbido de extirpar-me feias pequenas verrugas de meu rosto que, em matéria de estética, não parece ter mais sorte de que seu aposto nasal. Não vem ao caso, agora, avaliar a desarmonia genérica de minha desconcertante figura. Volto ao nariz: o valente cirurgião esteve a ponto de, a páginas tantas, arrancar-me a narícula, conjecturando-a terrível câncer, e dessa mala praxis só me livrei porque uma santa enfermeira, a Hermogênea, ao presenciar o início da projetada ablação naricular, estourou uma sonoríssima gargalhada. Foi difícil recompô-la, a Hermogênea, que por pouco, pouco, não perdeu o emprego. Já avistei a hipótese de que, consumada fosse a erradicação de minhas ventas, eu terminava por ali morrer de irrefreável hemorragia.

3 comentarios

Ana Paula Baptistuta Stevenson -

Não sabia que o Sr. escrevia neste blog.
Simplesmente a-d-o-r-e-i!
Uma oportunidade de não perder contato com seus textos.
Abraços
Ana Paula

Camila -

Adorei!!!! Mto bom!!!!
bjos!!

ED -

O senhor me reportou a Cirano di Bergerac (Edmond Rostand, 1897). Em tempos de estudo das ´´psiquês``, lá estava eu, assistindo a uma peça teatral com o papel principal desempenhado, brilhantemente, por Antonio Fagundes, o doce e gentil Cirano e seu nariz ´´diferenciado``. Gostei da lembrança!