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O BLOG DO V-P

DE DISCÍPULOS E ALUNOS: um diálogo entre as nuvens

Viajei a Porto Alegre na companhia do Desembargador que vós sabeis, e, durante o vôo destinado à capital gaúcha, indaguei de nosso amigo sobre sua docência, pontualmente acerca da distinção que faz entre discipulado e alunado. O texto abaixo busca, lealmente, repetir o diálogo, ainda que não com as palavras exatas em que a conversa se desenrolou.

VP — Senhor Desembargador (: doravante, cum magna reverentia, referi-lo-ei, nesta postagem, Des.), se, como sei, tem na sua tarefa docente uma intenção sempre formadora, não consigo entender em que ponto distingue discípulos e alunos.

Des. – De fato, VP, a verdadeira docência não é instrutora (: melhor dito, não é instrutiva). Nunca, efetivamente, é neutra; a afirmação de neutralidade, de assepsia, não esconde os pressupostos ideológicos de ceticismo, agnosticismo, subjetivismo etc., quando não, até mesmo, de aversões escamoteadas (pense, p.ex., na atual onda de cristofobia). Julgo que a profissão de neutralidade é falsa, às vezes conscientemente fraudatória da boa-fé da audiência. Meus alunos, a quem muito estimo, e meus discípulos sabem o núcleo da doutrina que professo e nunca lhes nego, supostos os justos limites da inquirição, resposta de todo honesta quando me indagam sobre o que penso. Tampouco os discrimino quando não se compaginam com o pensamento que perfilho. Isso porque lhes respeito inteiramente a pessoa, ainda que não lhes conceda direito ao erro, erro com que não transijo.

VP – Permita-me, Des.: ponho-me de acordo em que a docência sempre, de algum modo, seja formadora. É por isso, exatamente por isso que não consigo já entender em que se distinguirão seus discípulos e seus alunos, se a ambos os grupos almeja formar.

Des. – É… Vê com acerto, VP, que não está na formação o ponto distintivo entre discípulos e alunos…

VP – Mas, então, estaria em que os discípulos são os que lhe seguem as idéias?

Des. – Não, não está nisso a distinção. Entre meus discípulos, há os que eu diria solidados com o núcleo de meus supostos filosóficos (: dou-lhe exemplo com o que mais inteiramente se aproxima do pensamento que perfilho, o Dr. ALEXANDRE G***, competente Promotor Público em ***); outros há que, acercados um pouco menos e variavelmente desse núcleo, não se afinam, acaso sem plena advertência disso, com a integralidade da doutrina tomista (: vejo-os, e lamento, ora influídos de subjetivismo, ora, de progressismo cristão, ora, de idealismo ou de relativismo; isso tudo se imbrica, VP, e é uma coisa difícil de afastar de todo, até porque esses meus discípulos são gente grande); ainda outros, até mesmo, estão muito distanciados daqueles supostos doutrinários tomistas. Judas Iscariotes, deslealdade à parte, é exemplo impressivo de discípulo também não-solidado ao pensamento de Seu Divino Mestre. Ao revés, tenho alunos que se aproximam bastante do fundo da minha cosmovisão jusnaturalista e cristã. Não me são mais ou menos afetos, não são mais ou menos capazes, mais ou menos respeitáveis apenas porque mais ou menos aderidos ao núcleo doutrinário que esposo. Em suma, fico a pensar que alguns, um dia, dirão francamente que se afastaram do discipulado porque não concordam comigo. Não serão desleais com isso. Apenas dirão que não são meus discípulos. É um direito seu. Há muitos em trânsito, como pode ver: o futuro dirá se prosseguirão, apesar das tentações relativistas, subjetivistas, imanentistas etc., na rica trilha que, de minha parte pobremente, estou a indicar-lhes. Seremos amigos de toda a forma, pois é de gente honrada que estou a falar.

VP – Acaso pensa, Des., ao falar em Judas, que se distingam os discípulos porque os vocaciona um mestre?

Des. – Essa é uma distinção secundária, VP. Com efeito, foi JESUS CRISTO quem escolheu Seus discípulos, e é o mestre quem chama seus próprios discípulos. Todavia, essa vocação é posterior à escolha. Chama-os porque os elegeu, e elegeu-os, pois, distinguindo-os entre outros, distinguindo-os, quando o caso, entre alunos.

VP – Não serão decerto melhores só por isso… quando penso em Judas. Confesso-me sem idéias…

Des. – A questão é objetiva, meu caro VP: a formação de alunos é designadamente voltada ao objeto formal do que se ensina e aprende: tenho alunos de Direito Penal, tenho alunos de Direito Constitucional, alunos a quem formo, pois, em Direito Penal e em Direito Constitucional, ainda que, per accidens, extraiam eles, à maneira de pressupostos inevitáveis, os traços daquela mundividência cristã e jusnaturalista-tradicional que abertamente professo. Aos discípulos, a eles, contudo, não trato, principalmente, de formar em disciplinas segmentares, mas, isto sim, de ensinar-lhes essa cosmovisão: cultivo-os na formação jusnaturalista (a incluir o Direito, a Política e sobretudo a Moral) e, nomeadamente, metafísica (abrangendo a teologia racional). Esses, os discípulos, aprendem, per accidens, as disciplinas segmentares… Formo-os para formarem. Permita-me dizer-lhe de maneira vernacular imprópria: quero que tradicionalizem o núcleo do pensamento que albergo. Torno-os depositários desse pensamento, de sorte que os conservem e entreguem às gerações futuras. Já estou velho, Senhor VP. Não quero que as verdades que me ensinaram, sobretudo meus Mestres José Pedro, Clovis e Fraga, meu Professor Alexandre Corrêa, os livros que li, as meditações que fiz, as noites não-dormidas, não quero que isso, enquanto me toca e me tocou, me acompanhe em funeral. É doutrina viva, meu bom amigo VP, doutrina viva que precisa de gente viva e valorosa para preservá-la, lutar por ela, aprofundá-la e ensiná-la. Entregando-lhes a doutrina, perseverarei em meus discípulos. Lembro-me de José Pedro, de comum, todos os dias. E várias vezes por dia.

VP – Interessante. Interessante de fato. Resta-me agora um problema: como escolhe, como separa o joio do trigo antes de seu crescimento, como sabe quem vai ser aluno e quem vai ser discípulo?

 

Des. – A escolha não é sem critérios, mas é guiada pela certeza de tendência. De toda a sorte, há um mundo de circunstâncias e de ulterioridades que não se controlam humanamente. Voltemos ao exemplo de Judas… Não me parece possível, por agora, esclarecer a integralidade de meus critérios para a eleição que faço. Digo-lhe, contudo, que começam pela aferição da lealdade. É uma primeira separação…Não se trata de uma escolha por simpatia: a simpatia, parece-me, é inclinação axiologicamente cega. Não escolho por outro gênero de afeição, tampouco, embora não exclua o afeto que, de todo e com diversa intensidade, possa vincular-me aos discípulos:¿ o Modelo Infinito dos Mestres não amava, preferentemente, o discípulo João? Nem por isso fê-lo Papa. A chave primeira é a lealdade, mas ela não abre porta alguma se não houver a mão que a conduza, a fechadura que se vá abrir, a casa em que a doutrina se hospede: há a disposição de ensinar, mas há também o consentimento do discípulo que abriga a doutrina…


(Íamos por certo adiante na conversa: ouviu-se, no entanto, a voz do comandante do vôo: “Tripulação de cabine, pouso autorizado”. Não voltei ao assunto durante nossa visita à terra gaúcha).

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