ATÉ A VOLTA, SE DEUS PERMITIR
O Desembargador que vós sabeis concedeu-me 15 dias de férias. Ele vai à Espanha, ou como prefere dizer: a uma das Espanhas; eu, à Terra de França, a Terra de Santa Joana D’Arc. Parto dia 14. Volto, DEUS mediante, dia 28 de outubro. Suspendo meus deveres de estado profissional.
1- MEMENTO PRIMEIRO DO ALUNADO:
Já tenho uma lista de impetrantes que me pediram representação junto ao corpo incorrupto de Santa CATHERINE LABOURÉ (1806-1876), na Igreja da Rue du Bac (isto é, la Chapelle Notre-Dame de la Médaille Miraculeuse).
De ofício, rezarei por minhas filhas, a meia dúzia de meus afilhados e também as três benjamins do discipulado.
(Pausa para publicidade: os que desejem integrar o elenco, escrevam para este blog. Comprometo-me com uma Ave-Maria para cada qual. Se quiserem também que eu lhes traga a medalha milagrosa, peçam-me; farei o possível para trazê-la, já benta, para cada um dos que a demandarem).
2- MEMENTO SEGUNDO DO ALUNADO:
Subirei a Montmartre e lá verei um pôr-de-sol na Paris de todos os sonhos. Lembrar-me-ei de meus alunos. Serei ali um pouco seus olhos. Desejarei, de coração —bem à frente da Basílica do Sacré-Coeur, cuja cripta emociona-me sempre—, que todos um dia tenham o gosto de, pessoalmente, contemplar a sublimidade de um desate cotidiano da, vista de Montmartre, Terre de France.
(Ancoragem interpretativa: isso é muito melhor e mais significativo do que, apesar da grandeza do vinho tinto, limitar-me à elevação de um brinde aos alunos. Em todo caso, como o sugeriu CHESTERTON, aproveitemos a ocasião para rezar a DEUS, agradecendo a invenção do Borgonha).
3- PELA PONT-NEUF:
Perdoem-me. Amável censura impede-me falar do tempo de meu meridiano. Todavia, peço isto, deixem-me andar pela Pont-Neuf (: foto acima). Deixem-me, ainda que só por uns breves minutos, deixem-me andar por ali e dar rédeas à “louca da casa”, na expressão de Santa TEREZA DE ÁVILA, e que possa imaginar, enquanto atravesso essa linha de fronteira da Île de la Cité, uma imensa e remoçada alegria neste mundo do bom DEUS.
Cruzava essa ponte, em seus pouco menos de 280 metros, de extremo a extremo, em 385 ou 390 passos de minhas pernas mais jovens. Agora, com mais vagar, por lá andarei 420 ou 425 passos, menos por culpa das pernas desgastadas do que do ar apaixonante da travessia.
Sedutor ambiente do Vert Galant, a Pont-Neuf, velha de séculos (inaugurou-se em 1607), dizem alguns ser o mais romântico dos lugares do mundo. Sempre duvidei dessa referência: o lugar mais romântico do mundo é o em que se encontram e acercam dois corações apaixonados de mútuo e casto amor, corações relativos de um reto amor que, moderado pela razão, é vestígio agudíssimo de DEUS.
Perdoem-me, contudo, que, num mundo tão utilitário e burocrático em que se vai o nosso pervertendo, eu me resguarde no universo poético, e assim regresse aos tempos de um amor (dir-se-á) ingênuo, e que me imagine rejuvenescido, e assim me ponha a cruzar vagarosamente a Pont-Neuf.
Serão 420 —ou 425— passos. É só isso que estou a pedir-lhes. Não é muito. Serão alguns apenas os minutos e os passos dessa travessia: seremos eu e minha transitória e enlouquecida imaginação. Deixem-me passar pela ponte. Mais nada, nada mais. Depois isso, tratarei de, regressado dos sonhos, atar fortemente a "louca da casa".
DE BREVITATIS ADULATIO ou DE JEANS & LA DOLFINA
Um surto hipocondríaco, remanência dos tempos em que eu vivi doente (e por pouco não morri das complicações imaginárias de uma tosse alérgica), levou-me sexta-feira pela manhã a um nosocômio lotado de enfermos. Picaram-me o braço, retiraram-me sangue, contar-me-ão o PSA. Não vale que me afirmem que estou com uma cara boa; estou persuadido: quem vê cara, não vê próstata.
Esse não é o tema central desta postagem. A questão é outra. Não me vi confortável de paletó e gravata para que me surrupiassem um pouco de sangue. Então pus-me no que, salvo engano de minha parte, chamam de "traje esportivo". Isso sempre me pareceu um convite para ajaezar-me de uma camisola do Jabaquara. Minhas filhas ferreteiam-me em dizer que não é assim. Tornaram-me defeso vestir-me sem aconselhamento.
O fato é que me enroupei de uma camiseta La Dolfina e de um par de panos juntados que, segundo me ensinaram, faz as vezes de uma calça.
Explico-me, primeiro, sobre a calça. Chamei-a, certa vez, de rancheira, tal era comum referi-la na minha mocidade, e fui por isso alvejado com meia dúzia de cascalhadas incontíveis. Tentei corrigir: "Não, não rancheira. Lee, calça Lee, perdão...". Novas cachinadas, e desta vez superando a meia dúzia. Alguém, piedosamente, lecionou-me que essa espécie de calça agora se designa jeans. Jeans que, a meu ver, aqui para nós, é só um tecido... Mas vá lá, metáforas, metáforas... Deve ser coisa excelente essa jeans (ou rancheira, ou Lee...), porque não há meu aniversário (ainda o comemoro) ou Natal em que não me presenteiem com uma dessas jeans. E, de modo invariável, vem ela adornada com dois avisos orais: 1- "agora, sim, trata-se de uma calça de último tipo, moderna, moderna" (as dos anos anteriores, sugerem-me, devem amealhar-se num canto recôndito do roupeiro, sem mínima vocação para o uso); 2- "essa calça serve para todas as ocasiões" (o que, a ser verdade, me induz pensar que não serve para ocasião nenhuma, primícia de que logo segue me ponha eu a acastelar a nova jeans no monte das antigas).
Agora trato da camiseta La Dolfina. Preta, com a etiqueta da marca (logotipo e texto) estampada na frente da peça: sentir-me-ia uma espécie de outdoor ambulante, não se dera que, tristíssima figura, comporto-me, habitual canhestro, como um paradoxo da publicidade possível: um painel deambulador antipublicitário! Comprei essa Dolfina em Buenos Aires, na Galeria Pacífico, au rés de chaussée. Garantiu-me o vendedor (foi o mesmo que, certa vez, me empurrara um terno gelo só rara e corajosamente vestido), dizia eu: garantiu-me o vendedor que, com minha esbelta compleição (era de mim, era de mim que ele estava a falar!), dispensava provasse eu a camiseta. Nascemos, a camiseta e eu, um para o outro. Amor pela Dolfina à primeira vista. Rectius: à vista, de fato, foi o pagamento do preço da camiseta...
Só no Brasil, resolvi trajar-me com essa desdita cuja Dolfina. De pronto, coloquei-a mal: o logotipo foi parar nas costas. A desgraçada, após isso, não queria sair; enroscou-se em meu pescoço, e sorte minha que eu não estava em crise hipocondríaca; teria morrido estrangulado pela Dolfina. Advertiram-me a tempo de que uma etiqueta interna assinala a orientação correta das camisetas (lá em casa são minha mulher, três filhas, duas empregadas... sempre há alguém de vigilância quando apareço ajambrado). Nova experiência: o logotipo veio para a frente mas as mangas sobraram, batendo-me na ponta extrema do dedo médio de cada mão. Alguém confortou-me com o fato de que, ao menos, as duas mangas tinham o mesmo comprimento.
Deram-me um curso rápido, mais ou menos ao estilo Assimil, de que a Dolfina poderia ainda usar-se, contanto que eu recuasse as mangas à altura da metade do antebraço, o que corresponde, no meu caso, a um meu palmo e oito dedos a contar do linde extremo do dedo médio. A boa notícia posterior foi que a Dolfina, após lavagem depuradora, não encolheu; ao revés, parece que cresceu; só parece que cresceu: não cresceu, deformou-se. As mangas esticaram talvez um pouquinho, vá lá, o que não me acrescentou, porém, nova tarefa em seu retorno à metade do antebraço, dada a cautela com que, discreto que sou, adotei critério gnosiológico objetivo, o ponto médio do antebraço, para manter minhas mãos a descoberto.
Diante desse quadro, é fácil conjecturar o quanto, arroupado com a jeans e a Dolfina, eu, numa imprudente passagem pela nossa Fac, fiquei aterrorizado ao encontrar duas corteses e estimadíssimas ex-alunas, a DINORAH *** e a ELAINE ***. Por pouco não me desemaranhei de falar-lhes, mas não lhes pude resistir ao aceno gentil. Dois dedinhos de prosa (não arrisquei mais do que os mindinhos, não fora o caso de que, fossem os médios, perderia o parâmetro para tresandar a Dolfina), e uma dessas antigas alunas, eu não sabia que idioma implacável tinha a ELAINE, abdicando de sua munificência costumeira, comentou, brevitatis adulatio, com implícito reporte à Dolfina e ao jeans: "Permita-me dizer-lhe, Senhor Professor, que a roupa esporte lhe cai muito bem!" (as mangas da Dolfina, Doutora, elas é que estavam prestes a cair...). A minha prezadíssima ex-aluna vai ter de explicar o motejo a vida inteira, até a quarta geração ("eu vi, eu vi, não minto..."); e dá-lhe histórico dos fatos. Em breve, graças a isso, será a mais popular das alunas da nossa Fac. Uma historiadora. Escuso-a de coração. Eu também achei graça (ou desgraça) da Dolfina e da calça jeans.
FOI CERTA VEZ, ALGUMA VEZ, ERA INVERNO
Volto aqui, assim o prometera, ao tema da paixão outonal. Permitam-me avistar que, na postagem pretérita (cfr. abaixo "Sobre a Paixão Outonal: Primeiros Tópicos"), adverti com todas as letras que há boas e há más paixões outonais. No que segue, o de que se trata é a circunstancial história da ausência de uma paixão de outono; em troca, refiro a nostalgia suscitada por uma canção lindíssima, cujos versos (eis o ponto) versam um amor de outono.
Era Montevidéu e era julho de 1996 (lembram-me o frio e a tristeza em que me enterrava, doído ainda da morte recente de meu pai). Reencontrei ali, na voz amorável de LAURA CANOURA (que aparece na foto acima), nosso intenso e dramático tema outonal. Ouvi-a cantar, conduzida então pela feliz regência de HUGO FATTORUSO, En este otoño, de ARMANDO MANZANERO, grande compositor mexicano (são suas, entre outras, Contigo aprendí e Somos novios).
Eis agora o poema de MANZANERO, que me faz regressar àquela invernal tristeza de 96:
"En este otoño,
cuando las hojas de mi tiempo
se amontonan,
que mi pasado y mis errores
me aprisionan,
surjes de pronto
y me construyes
otro sueño.
En este otoño,
que mis anhelos se batían en retirada,
que mis deseos se perdían
en la nada,
me haces sentir en este otoño
que del mundo yo soy dueño.
En este otoño,
cuando me hallaba recordando
primaveras,
me mantenía caminando horas enteras,
y era mi perro
compañero de mi otoño.
En este otoño,
estoy viviendo otra vez
la adolescencia,
fue el toque mágico de un beso
y tu presencia,
que bello tiempo estoy viviendo,
estoy sintiendo en este otoño...".
UM INSTANTÂNEO DE SANTA CRUZ DO SUL
Na foto acima, referente ao final da aula na Universidade de Santa Cruz do Sul, em 15-9-2006, entre outros importantes estudiosos do Direito:
1- à esquerda, trajando casaco verde, o eminente registrador de Lajeado, nosso muito amigo CARLOS FERNANDO WESTPHALEN;
2- a seu lado, nossa amiga Dra. ADRIANA TEIXEIRA DE OLIVEIRA, de Passo Fundo;
3- segue-lhe, para a direita, a costumeiramente pouco propícia figura do palestrante,
4- que tem à sua esquerda a Dra. DANIELA BELLAVER, de Farroupilha;
5- ainda de pé, o penúltimo da foto, à direita, é o autorizado estudioso do Direito Registral e muito amigo Dr. LUIZ EGON RICHTER;
6- à sua frente, agachados, de terno e gravata, o jurista RICARDO GUIMARÃES KOLLET, e, a seu lado, com jaqueta clara, o registrador público PAULO ÁVILA, de Teotônia.
Fico a dever a identificação fotográfica dos demais que, não por essa deficiência de meus neurônios, deixam aqui de merecer o melhor e mais sincero de meu respeito e consideração pessoal.
QUANDO A OUTRA ABRE A BOCA... (SAI DE BAIXO!)
Encontra-me um velho amigo mineiro, que me pergunta: "Leu o último número do 'Povo de Deus em São Paulo'?".
Eu respondi, com alguma indiscreta rapidez: "Não li, mas se soubesse que era o último número, teria lido... e com qual satisfação!".
"Falando sério, VP... Não leu mesmo?".
E vai daí me conta e mostra, no folhetim de 24-9-2006 (ano 30, n. 50, B), entre as orações dos fiéis, esta pérola da Outra:
"Pela Santa Igreja de Deus, para que busque no serviço e na disponibilidade a toda a humanidade seu único motivo de glória, rezemos".
Interpela o arguto mineiro: "Ué, agora o motivo (não só isso, o único motivo) da glória da Igreja não é mais DEUS? É o serviço e a disponibilidade aos homens, é?".
E rematou o pensador de Diamantina: “Eis a linguagem da Outra! Seu sonho é o de concorrer com a ONU. Ah!, a Outra, a fraudatória, a ONG de todas as confissões...".
Eu, que não sou mineiro, só respirei fundo, guardei o terço no bolso e deitei fora o folhetim. Apenas começava meu domingo.
QUANDO AS LETRAS HUMANAMENTE ESCRITAS OCUPAM O LUGAR DE CRISTO
Uma tarde dessas, na semana que passou, fui à Igreja de A***, para rezar junto ao Sacrário. Como é já freqüente acontecer nas insípidas igrejas modernosas, o Santíssimo não fica mais no centro do altar; fica ao lado, numa capela isolada. Em vez do Sacrário, no altar, colocou-se ali uma estante de madeira (não, não minto, não caricaturo, não excedo os lindes da verdade mediante ironia ou sarcasmo! Dói-me, ao contrário, falar tudo isto), e, nela, rústica e fraudatória estante, reuniram-se modernas edições e pobremente encapadas da Bíblia de Deus. As capas rudimentares são um acréscimo de pauperismo, de miserabilismo, desse empobrecimento ideológico que faz da rusticaria um objetivo, do feio, uma grandeza, do falso, a perfeição. Trata-se da Outra, da falseada que vai mostrando a carantonha no próprio Templo da Verdade. Assediaram-na, tomaram a Casa da Verdadeira, fraudaram-na, fraudaram-nos. No lugar do Verbo, exibem-se uns textos humanamente impressos.
Não se conjecture queira eu retornar no tempo. Não se trata de uma volta para trás, trata-se (como sugeria MARCEL DE CORTE) de um regresso ao real, porque ao princípio era o Verbo! E Ele sempre o será!
IMPUTAÇÃO GRACIOSA A SUPOSTO USO DE MEU HIPERBÓLICO E PARADOXAL NARIZ
Graciosa opinião, outro dia, reportou-se a um cogitável meu bom gosto na escolha e uso de perfumes.
Considero, de fato, graciosa essa opinião, não apenas porque gratuita (i.e., sem fundamento na realidade das coisas), mas também porque faceciosa. Tolero esse tipo de graça com meus defeitos pessoais, especialmente porque eu próprio me divirto com eles. Explicar-me-ei um pouco melhor.
A regular distribuição de virtudes e defeitos é um mistério na economia da Providência: quando nasci —valho-me aqui da fidúcia que deposito na narrativa de meus pais—, já vinha eu provido de narícula incoadunável com as simetrias geométricas por então conhecidas no universo criado.
Segundo relação de uma tia, a Walderez (história que dela ouvi com repetição periódica, de maneira sempre substancialmente unívoca), três médicos foram unânimes em tranqüilizar meus amoráveis pais quanto à possibilidade aspiratória do surpreendente mostrengo nasal do, de resto, pequeno filho, ainda que —prognose depois felizmente frustrada— um desses Hipócrates haja guardado prudente reserva acerca dos riscos expiratórios da impressiva narina do neonato, muito receoso o médico de que, especialmente em caso de súbita exalação, houvesse risco de lesões pessoais e danos materiais no indefeso entorno.
Uma de minhas queridas avós, a Nagibe, noticiou-me, firmando-se em fontes que jurava idôneas, nunca antes, na Maternidade São Paulo, em que nasci no ano da Graça de 1950, tantas visitas e interjeições de espanto freqüentarem e referirem um agregado nasal de recém-nascido. Eu era, enfim, o primeiro neto e portento da família, e, conforme registrava a avó, merecia as muitas e protocolares ostentações, que se prolongaram, sob vistas mais curiosas do que amantes, por meses e meses a fio. Essa minha avó paterna sempre se orgulhou do neto, a quem aconselhava (e dizia ser isto um favor ao Bem Comum) que nunca se resfriasse. Cautelosa, a nossa Nagibeta, e prendada na arte da agulha, deu-me essa bela senhora, com carinho invicto, meu primeiro lencinho, feito de algodão puríssimo, com forma retangular, medindo 80 cm em dois lados e 95 cm nos outros dois. Minha tia Yvone, a ela, irmã mais velha de meu pai, coube a honra de aumentar os bolsos traseiros de minhas calças, para que, adrede, ali coubesse o lencinho. Quando tinham de lavá-lo (o que sempre exigia não fosse tempo de racionamento de água), isto era um malefício para mim: não só se dava que eu não saía de casa até que me restituíssem o pano, senão que o excesso de anil aplicado ao processo de alvejamento do lenço me provocava recorrentes esternutações. De modo que era manifesto o círculo vicioso: devolvido o lencinho, dele exalava algum numinoso odor, e dá-lhe então espirro insistente; isso me fazia anodoar o pano com perdigotos, e, dessa maneira, quanto mais rapidamente eu enxovalhava o lenço com borrifos, mais brevemente ele se lavava e sofria nova incidência de anil, propiciando mais e renovadas esternutações. Graças a isso, eu permanecia longo tempo em casa, o que me permitiu aprender um pouquinho do idioma catalão, estudar a geografia de Andorra La Vella e formar uma coleção supimpa de embalagens roxas de anil Colman.
Menino, com cabelo à Garcez, na escola primária, lá por mais de uma vez fui suspeito de, nas fossas de meu festejado septo, abrigar pequenos bilhetes amorosos (que me teria remetido, com o desenho de flechados corações, a Adalgisa, menina míope, míope de todo, e estrábica também). Certa ocasião, fui mesmo parar na sala da Diretoria, por indícios circunstanciais de, com esforçada aspiração, ter, propositadamente, mitigado o quantum da prudente reserva aérea de uma cabine local de elevador, com risco de desfalecimento para os utentes do veículo. Suspeitas e acusações injustas (: quanto aos bilhetes da Adalgisa, esclareço, eu os guardava no meio do lencinho, em que, apesar das buscas pessoais dos bedéis, nunca foram encontrados). Increpações, além disso, infrutíferas, pois não diminuíram milésimo de côvado de meu nariz. Mocinho já, com meus 18 ou 19 anos, quando me plantava, sob o sol, à espera, na Praça do Patriarca, do ônibus que me levaria para a Vila Madalena onde morava, sempre via um bando de meninos e meninas, de seus sete ou oito anos, correrem para a fila, abrigando-se, à sombra da pouco fidalga minha narícula, dos por então castigantes ardores do verão.
Não bastava isso, não, não bastava não! Calha que esse meu aduncado nariz —posto ao concerto de um libanês genético estilo— tem um defeito funcionário paradoxal: desproporcionado por sua extensão às harmônicas linhas do universo, opera mal; não, não é que opera mal, atua pessimamente, ou por outra: não cheira. Por uma dessas penas compensatórias das do Purgatório, sobre, pois, ter de comigo levá-lo, esse nariz grandioso, a toda parte, não cheira, não sente cheiro o estúpido. De modo que, algum perfume agradável suponha-se eu use, se é mesmo agradável, isso tenho de confiar no juízo alheio, e, para mim, será apenas indício de que a Providência age com misericórdia, recompensando-me das cruzes de levá-lo em meio à face.
Muitos sabem disto: fui ter, outro dia, com um cirurgião, incumbido de extirpar-me feias pequenas verrugas de meu rosto que, em matéria de estética, não parece ter mais sorte de que seu aposto nasal. Não vem ao caso, agora, avaliar a desarmonia genérica de minha desconcertante figura. Volto ao nariz: o valente cirurgião esteve a ponto de, a páginas tantas, arrancar-me a narícula, conjecturando-a terrível câncer, e dessa mala praxis só me livrei porque uma santa enfermeira, a Hermogênea, ao presenciar o início da projetada ablação naricular, estourou uma sonoríssima gargalhada. Foi difícil recompô-la, a Hermogênea, que por pouco, pouco, não perdeu o emprego. Já avistei a hipótese de que, consumada fosse a erradicação de minhas ventas, eu terminava por ali morrer de irrefreável hemorragia.
DE DISCÍPULOS E ALUNOS: um diálogo entre as nuvens
Viajei a Porto Alegre na companhia do Desembargador que vós sabeis, e, durante o vôo destinado à capital gaúcha, indaguei de nosso amigo sobre sua docência, pontualmente acerca da distinção que faz entre discipulado e alunado. O texto abaixo busca, lealmente, repetir o diálogo, ainda que não com as palavras exatas em que a conversa se desenrolou.
VP — Senhor Desembargador (: doravante, cum magna reverentia, referi-lo-ei, nesta postagem, Des.), se, como sei, tem na sua tarefa docente uma intenção sempre formadora, não consigo entender em que ponto distingue discípulos e alunos.
Des. – De fato, VP, a verdadeira docência não é instrutora (: melhor dito, não é só instrutiva). Nunca, efetivamente, é neutra; a afirmação de neutralidade, de assepsia, não esconde os pressupostos ideológicos de ceticismo, agnosticismo, subjetivismo etc., quando não, até mesmo, de aversões escamoteadas (pense, p.ex., na atual onda de cristofobia). Julgo que a profissão de neutralidade é falsa, às vezes conscientemente fraudatória da boa-fé da audiência. Meus alunos, a quem muito estimo, e meus discípulos sabem o núcleo da doutrina que professo e nunca lhes nego, supostos os justos limites da inquirição, resposta de todo honesta quando me indagam sobre o que penso. Tampouco os discrimino quando não se compaginam com o pensamento que perfilho. Isso porque lhes respeito inteiramente a pessoa, ainda que não lhes conceda direito ao erro, erro com que não transijo.
VP – Permita-me, Des.: ponho-me de acordo em que a docência sempre, de algum modo, seja formadora. É por isso, exatamente por isso que não consigo já entender em que se distinguirão seus discípulos e seus alunos, se a ambos os grupos almeja formar.
Des. – É… Vê com acerto, VP, que não está na formação o ponto distintivo entre discípulos e alunos…
VP – Mas, então, estaria em que os discípulos são os que lhe seguem as idéias?
Des. – Não, não está nisso a distinção. Entre meus discípulos, há os que eu diria solidados com o núcleo de meus supostos filosóficos (: dou-lhe exemplo com o que mais inteiramente se aproxima do pensamento que perfilho, o Dr. ALEXANDRE G***, competente Promotor Público em ***); outros há que, acercados um pouco menos e variavelmente desse núcleo, não se afinam, acaso sem plena advertência disso, com a integralidade da doutrina tomista (: vejo-os, e lamento, ora influídos de subjetivismo, ora, de progressismo cristão, ora, de idealismo ou de relativismo; isso tudo se imbrica, VP, e é uma coisa difícil de afastar de todo, até porque esses meus discípulos são gente grande); ainda outros, até mesmo, estão muito distanciados daqueles supostos doutrinários tomistas. Judas Iscariotes, deslealdade à parte, é exemplo impressivo de discípulo também não-solidado ao pensamento de Seu Divino Mestre. Ao revés, tenho alunos que se aproximam bastante do fundo da minha cosmovisão jusnaturalista e cristã. Não me são mais ou menos afetos, não são mais ou menos capazes, mais ou menos respeitáveis apenas porque mais ou menos aderidos ao núcleo doutrinário que esposo. Em suma, fico a pensar que alguns, um dia, dirão francamente que se afastaram do discipulado porque não concordam comigo. Não serão desleais com isso. Apenas dirão que não são meus discípulos. É um direito seu. Há muitos em trânsito, como pode ver: o futuro dirá se prosseguirão, apesar das tentações relativistas, subjetivistas, imanentistas etc., na rica trilha que, de minha parte pobremente, estou a indicar-lhes. Seremos amigos de toda a forma, pois é de gente honrada que estou a falar.
VP – Acaso pensa, Des., ao falar em Judas, que se distingam os discípulos porque os vocaciona um mestre?
Des. – Essa é uma distinção secundária, VP. Com efeito, foi JESUS CRISTO quem escolheu Seus discípulos, e é o mestre quem chama seus próprios discípulos. Todavia, essa vocação é posterior à escolha. Chama-os porque os elegeu, e elegeu-os, pois, distinguindo-os entre outros, distinguindo-os, quando o caso, entre alunos.
VP – Não serão decerto melhores só por isso… quando penso em Judas. Confesso-me sem idéias…
Des. – A questão é objetiva, meu caro VP: a formação de alunos é designadamente voltada ao objeto formal do que se ensina e aprende: tenho alunos de Direito Penal, tenho alunos de Direito Constitucional, alunos a quem formo, pois, em Direito Penal e em Direito Constitucional, ainda que, per accidens, extraiam eles, à maneira de pressupostos inevitáveis, os traços daquela mundividência cristã e jusnaturalista-tradicional que abertamente professo. Aos discípulos, a eles, contudo, não trato, principalmente, de formar em disciplinas segmentares, mas, isto sim, de ensinar-lhes essa cosmovisão: cultivo-os na formação jusnaturalista (a incluir o Direito, a Política e sobretudo a Moral) e, nomeadamente, metafísica (abrangendo a teologia racional). Esses, os discípulos, aprendem, per accidens, as disciplinas segmentares… Formo-os para formarem. Permita-me dizer-lhe de maneira vernacular imprópria: quero que tradicionalizem o núcleo do pensamento que albergo. Torno-os depositários desse pensamento, de sorte que os conservem e entreguem às gerações futuras. Já estou velho, Senhor VP. Não quero que as verdades que me ensinaram, sobretudo meus Mestres José Pedro, Clovis e Fraga, meu Professor Alexandre Corrêa, os livros que li, as meditações que fiz, as noites não-dormidas, não quero que isso, enquanto me toca e me tocou, me acompanhe em funeral. É doutrina viva, meu bom amigo VP, doutrina viva que precisa de gente viva e valorosa para preservá-la, lutar por ela, aprofundá-la e ensiná-la. Entregando-lhes a doutrina, perseverarei em meus discípulos. Lembro-me de José Pedro, de comum, todos os dias. E várias vezes por dia.
VP – Interessante. Interessante de fato. Resta-me agora um problema: como escolhe, como separa o joio do trigo antes de seu crescimento, como sabe quem vai ser aluno e quem vai ser discípulo?
Des. – A escolha não é sem critérios, mas é guiada pela certeza de tendência. De toda a sorte, há um mundo de circunstâncias e de ulterioridades que não se controlam humanamente. Voltemos ao exemplo de Judas… Não me parece possível, por agora, esclarecer a integralidade de meus critérios para a eleição que faço. Digo-lhe, contudo, que começam pela aferição da lealdade. É uma primeira separação…Não se trata de uma escolha por simpatia: a simpatia, parece-me, é inclinação axiologicamente cega. Não escolho por outro gênero de afeição, tampouco, embora não exclua o afeto que, de todo e com diversa intensidade, possa vincular-me aos discípulos:¿ o Modelo Infinito dos Mestres não amava, preferentemente, o discípulo João? Nem por isso fê-lo Papa. A chave primeira é a lealdade, mas ela não abre porta alguma se não houver a mão que a conduza, a fechadura que se vá abrir, a casa em que a doutrina se hospede: há a disposição de ensinar, mas há também o consentimento do discípulo que abriga a doutrina…
(Íamos por certo adiante na conversa: ouviu-se, no entanto, a voz do comandante do vôo: “Tripulação de cabine, pouso autorizado”. Não voltei ao assunto durante nossa visita à terra gaúcha).
SOBRE A PAIXÃO OUTONAL: PRIMEIROS TÓPICOS
1- Fiquei de escrever alguma coisa sobre a dolência do amor outonal, movimento do apetite sensitivo daqueles que se encontram nel mezzo del camin e, súbito, atraídos integralmente por entes reais singulares amoráveis, são vocacionados à consecução de seu bem o mais plenário possível. A nota essencial desse amor —o fato de ser outonal— é a do meridiano etário do sujeito passivo que, de comum, porém, renova-se com esse movimento, rejuvenesce-se —com todos os riscos adjetos desse regresso (ou, quando o lastimável caso, de um retorno)—, dando ensejo à figura da “volta primaveril”, a que não faltam, aqui e ali, os traços da risível desproporção entre o suposto passional maduro e a atração amorosa com rasgos juvenis. Por isso, é freqüente o cariz de pateticidade nessa dolência tardia. Não é raro atribuir-se essa paixão (dita) intempestiva ao demônio do meridiano —seja, como pensam alguns, simples referência metafórica ao declínio das forças psicológicas e físicas dos homens de mais de 50 anos, seja, como pensam outros, uma indicação de pessoa espiritual singular e pervertida logo após a criação do universo.
2- A visível contemporânea degradação do amor humano sugere-me, neste passo, para tentar melhor apreender o conceito da paixão outonal, isentando-a de uma pejoração essencial (: em suma, a meu ver, haverá boas e más paixões outonais), regressar ao tema da Doutrina do Perfeito Amor, segundo, com minhas pobres forças, a recrutei em DANTE, investiguei-a na palpitante obra de AFONSO BOTELHO, pude instruir-me com os escritos de LUGONES e, sobretudo, aprofundar-me nas sábias meditações de RAMÓN LLUL. Quero dentro em seus lindes situar a paixão outonal eticamente admissível.
3- Conquanto, redundando sobre si próprio, o amor do stil nuovo nutra-se também da vontade que o move, ele se dirige ao cultivo honesto (i.e., cortês) do ente amorável. Essa redundância íntima não o idealiza, porque ele converge a um ente real, cuja amorabilidade recolhe intensamente, de tal maneira que, embora o amante cortês seja sujeito de paixão, transcende-a ao cultuar o ente amorável e real —um alter—, buscando-lhe todo o bem possível. Heróico, o amante do amor cortês cultiva a continência como preservação do próprio amor que, elevado, não admite nada que o rebaixe no plano espiritual. O que não implica recusar valor à fusão dos sexos, remate maior do amor humano. Todavia, isto sim, reclama submeter essa fusão, indispensavelmente, à instância ética que conserva e exalta a espiritualidade do amor cortês. Por isso, o amor do stil nuovo só pode ser amor entre homem e mulher.
4- Amor, assim o disse, entre homem e mulher, reduplicativamente, enquanto tais, em sua inteireza de forma e de matéria (scl., de alma espiritual e corpo). Não se confundem, pois, de um lado, o amor cortês (ao modo da Doutrina do Perfeito Amor) e, de outro, o amor fraternal (ou ainda o filial, o paternal, o maternal), porque o amor fraterno é amor destituído, por natureza, de impulsos concupiscentes, é amor elevadíssimo e puríssimo, não, porém, amor entre homem (homo qua homo) e mulher (mulier qua mulier), mas de homem enquanto irmão, de mulher enquanto mãe, de homem ut pai, de mulher qua filha etc. O amor do stil nuovo, pois, convive essencialmente com um estrato carnal, que exige a continência heróica, ou seja, a contenção da cortesia nas fronteiras da honestidade exterior e interior (: perseverante retificação de intenções). Só assim se entenderá que seja um amor superior, o amor-tipo do cavaleiro cristão: “trovador da beleza íntegra da mulher amada, a mulher, quase à espartana, senhora da Cortesia, que exige a pureza do heroísmo, a peleja pela justiça, em troca não mais do que um sorriso e uma saudação” (apud postagem abaixo, “Cavaleiro e Trovador, Trovador e Cavaleiro”).
5- O amor idealista (: dito platônico) é amor imanente, é uma fraude do amor, é mero amor do amor (amor amoris), não se reparte, é egocêntrico, seu amorável é a íntima satisfação do sujeito passivo, é, como eu disse em postagem precedente neste blog, “uma recusa do pecado original concertada com a busca do Paraíso perdido”.
(Prosseguiremos, se DEUS quiser).
PRÓXIMAS ATRAÇÕES DESTE SÍTIO
Informo aos meus insistentes leitores (eu, fosse eles, estaria lendo nosso GUSTAVO CORÇÃO, tal o anda fazendo, com proveito, minha amiga espiritualmente imensa e fraternalíssima FERNANDA***, ou meditando sobre algumas questões da Suma, em vez de eu perder tempo comigo próprio) que pretendo postar, nos próximos dias, três matérias neste nosso quase incógnito sítio eletrônico:
1- uma reportagem fotográfica sobre a aula do Desembargador que vós sabeis na pós-graduação da Universidade de Santa Cruz do Sul; os retratos, desta feita, não foram do invejável talento deste genial artista que é nosso bom amigo CARLOS ALBERTO PETELINKAR, El Papito. Aguardo apenas, para a postagem, que a jurista de Passo Fundo, ADRIANA TEIXEIRA DE OLIVEIRA, por estes dias em Porto Alegre, volte a sua terra natal e de lá me remeta as fotos.
2- Uma incursão sobre o tema dos realismos filosófico e jurídico, a pedido (em particular) de nosso estimado amigo Engenheiro P***K***
3- Um brevíssimo excurso, suscitado por ilustre interpelante (igualmente, em particular) à frente de minha tratativa sobre LUGONES (cfr. abaixo), concernindo às características da paixão outonal, essa dolência que primaveriza corações meridianos. Interessa-me, sob manifesto influxo dantesco e lullista (: com perdão: refiro-me a RAMÓN LLUL, por evidente), não só assinalar alguns dos traços capitais dessa tardo-paixão amorosa (: p.ex., o regresso tardio à adolescência, o sentimentalismo extemporâneo) mas, sobretudo, fronteirizar-lhe os lindes éticos, cuja ultrapassagem perverte a dolência, paixão que, de si própria, é , in abstracto, indiferente na instância moral, e, em concreto, boa ou má paixão conforme seu objeto, a intenção do agente e as circunstâncias de seu entorno.
O CAMPONÊS DO TIETÊ EM VISITA AO TAQUARI
Acabo de voltar da Terra dos Farroupilhas, mais uma vez impressionado com o jeito hospitalário daquela gente amiga que esteve a recepcionar-nos, em Lajeado e Santa Cruz do Sul, de maneira para lá de principesca. Fui ouvir em palestra aquele Desembargador que vós sabeis, convidado ele pelo Professor LUIZ EGON RICHTER a doutrinar sobre Direito Registral Imobiliário na pós-graduação da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC: na foto acima, vista aérea de seu cativante campus).
Mencionou-me o Desembargador seu contentamento com a vistosa ascensão intelectual do Professor LUIZ EGON, em quem anota um pensamento ordenado e em segura trilha de evolução. Também relatou-me sua satisfação com o alunado jovem, atento, cortês e, o que muito lhe importa, em constante dedicação ao aprofundamento de seus estudos.
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A aula do Desembargador, demais do acercamento à Hermenêutica Registral (tema de que vem tratando nos últimos tempos), indicou três pontos à consideração da seletíssima audiência:
1- a necessidade de, para remediar o grave problema da diáspora legislativa em matéria de registro predial, elaborar-se um Código de Registro Imobiliário Brasileiro;
2- a oportunidade de rever (e, assim o pretende, retificar) o predominante significado normativo que a doutrina do registro de imóveis, no Brasil, concedeu à expressão "processo contencioso competente", no art. 204 da LRP, para nesse conceito incluir as decisões jurisdicionais interlocutórias (suposto que precludidas);
3- a conveniência de estabelecer, pontualmente, uma relacionação entre o quadro classificatório dos princípios registrais e a divisão das inscrições (constitutiva, declarativa e de mera notícia), com o fim de flexibilizar, ante a diversa gradação inscritiva, a incidência dos vários princípios hipotecários.
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No dia 15, entre outros importantes encontros, almoçamos agradavelmente, em Lajeado, com o nosso bom amigo e ilustre jurista gaúcho CARLOS FERNANDO WESTPHALEN SANTOS e o simpático registrador público PAULO ÁVILA, de Teotônia, e, à tarde, estivemos com o Professor JORGE RENATO DOS REIS, conceituado civilista, a Professora SANDRA REGINA MARTINI VIAL, estudiosa da Teoria dos Sistemas, o Professor CLOVIS GORCZEVKSI, doutor em Direito pela espanhola Universidade de Burgos e que se afirmou interessado nas meditações jusnaturalistas, e o jurista RICARDO GUIMARÃES KOLLET, que recentemente escreveu interessante obra sobre as retificações no registro imobiliário.
Na manhã de sábado, 16-9, na viagem de Lajeado a Porto Alegre, tivemos simpatissíma e proveitosa conversa com o Dr. LUIZ EGON e sua encantadora mulher, Professora THAIS, ela que está a navegar nas águas profundas da filosofia hermenêutica.
Por fim, já na capital, estivemos na companhia do emérito intelectual paulista SÉRGIO JACOMINO, com quem, numa cafeteria do Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, passamos quase um par de horas em interessantíssima palestra, prenhe de idéias e, digamos assim, mergulhados em "planos de metas" acadêmicas e editoriais.
Vejamos o que sucederá com esses projetos de estudo e publicações. Esperemos que frutifiquem.
Agradecendo ao Engenheiro P***K***, à DENISE, à ED e ao WILLIAN
Mercê de constantes reclamações de pouco mais de metade da generosa, costumeira e inultrapassável quantidade de meia dúzia de estimadíssimos leitores deste blog, escrevo para dizer que, por agora (ao menos por agora), fico. Rectius: "fico" na antiga e salutaríssima acepção de permanecer, estabilizar-me, estar (o quanto possa) sem trânsito etc.
Por lástima e intenso sofrimento pessoal, contudo, tenho de acompanhar, em suas idas e vindas, aquele Desembargador que vós sabeis. Fui faz pouco a Buenos Aires, agora devo ir-me a Porto Alegre, depois, a Florianópolis, mais adiante a Madrid, e ouvi-lo em umas tantas palestras (ah! monótona, átona reiteração de ser sombra de uma pobre vida alheia), como se não já soubesse eu, de antemão, cada palavra do que vai ele dizer. Não digo que ele não diga exatamente aquilo que eu penso; isso não digo. Mas é demasiadamente rotineiro sempre saber antecipadamente o que ele falará. Triste, merencórico , bem se vê, este meu ofício de sombrio acólito.
Mas vá lá. Aqui redigirei alguma coisa nos tempos vagos. Salvo meu ócio! Ainda que sejam pequenas notas, pequeninas até, escreverei em homenagem à generosidade de meus seis leitores. Espero que hoje poste alguma nota sobre a obra do emérito constitucionalista PIETRO GRASSO.
Um milagre em Tzintzuntzan?
Tzintzuntzan é uma pequena cidade situada na meseta tarasca, distante, no sentido do Norte, pouco menos de 400 quilômetros da cidade do México e de 60 quilômetros de Morélia, capital do Estado de Michoacán. ‘Terra de colibris’ no idioma purépecha, Tzintzuntzan hoje abriga menos de três mil almas, cujo sangue nativo se conservou, mas outrora, ali às margens do lago Pátzcuaro, viu florescer uma civilização importante, de que dão sinal portentoso imponentes conjuntos de pirâmides, um tanto destruídos pelo tempo e pela incúria de gerações sucessivas. Foi um antigo juiz, Vasco de Quiroga (1470-1565), que, nomeado primeiro bispo de Michoacán, empossou-se na diocese de Tzintzuntzan (1538), honrando-se com a profunda catequização do antigo pueblo. Na parte externa da igreja local de Nuestro Señor del Rescate, qual se fora um nicho, construiu-se um altar: os purépechas criam que não se podia travar contacto com o sobrenatural se um teto lhes estivesse sobre a cabeça. A cruz atrial do lugar, obra dos nativos do século XVI, desvela símbolos que, à primeira vista, lembram um totem. Em vez de abolir as equivocadas práticas pagãs, o bispo Quiroga retificara-as, e o povo purépecha passou a cultuar o Deus verdadeiro e único, primeiro nas Missas celebradas do lado exterior da igreja, depois na veneração dessa cruz atrial, vicária indefinidamente superior de sua superstição totêmica.
Foi aos pés de Nosso Senhor do Resgate que, faz séculos, se impetrou a cura de uma epidemia de peste que estava a dizimar o povo purépecha. O fim da pestilência —relata-o a tradição daquela gente— foi um milagre de Deus. Ali também, em Michoacán, a exemplo dos Estados de Jalisco, Guanajuato, Querétaro e Zacatecas, muito correu o sangue dos cristeros, heróis da Pátria mexicana e mártires da Fé, resistindo à violenta intolerância com que, sob a capa surrada da ideologia da ‘ilustração’ e do ‘liberalismo’, impunham os jacobinos a expulsão e prisão de bispos, padres e religiosos, a proibição do culto, a clausura de escolas religiosas e o confisco de propriedades eclesiásticas. Foi aos gritos de ¡Viva Cristo rey y la Virgen de Guadalupe! que aquela gente forte e cristianíssima do México, sob a liderança, entre outros, de René Capistran Garza, Humberto Navarrete e Manuel Bonilla, enfrentou a morte injusta que ceifou, mártires da Fé, heróis da Pátria, homens da têmpera de Cristóbal de Magallanes Jara, Agustín de Caloca Cortes, José María Robles Hurtado, David Galván, Toribio Romo González, David Roldán Lara, Salvador Lara Puente, David Uribe Velazco, Pedro de Jesús Maldonado Lucero e Miguel de la Mora —canonizados todos, em 21 de maio de 2000, por João Paulo II. Também entre eles se conta o nome de S.Bernabé de Jesús Méndez Montoya (1880-1928), o primeiro santo michoacano: as forças estatais localizaram o Padre Bernabé, e sua ocupação, naquele momento crucial, foi a de, piedosamente, salvar hóstias consagradas, que tratou de consumir para evitar profanações. Feito isso, dirigiu-se ele a uma de suas irmãs, a quem sentenciou com heroicidade santa: “Es la voluntad de Dios. Que se haga su voluntad”. Mataram-no então com três tiros, a esse herói e mártir da cristíada, mataram-no com impiedade e injustiça exatamente aqueles que se diziam defensores da tolerância.
O padre Serafim Gonzalez, Vigário local, discretamente, não me confirmou a origem sobrenatural do ‘Cristo que cresce’. É verdade que, de modo expresso, não a excluiu como possível. É verdade que, ao mesmo tempo, aludiu a numerosos milagres no entorno da veneração a essa figura de Jesus Cristo morto, guardada no Templo de la Soledad, edificação vizinha à da igreja de Nuestro Señor del Rescate. É uma estátua do século XVI, feita com massa de haste de milho. Conserva-se, exposta à visitação pública, numa urna de madeira e de vidro. Dali sempre se retira, uma vez ao ano, tradicionalmente, séculos a fio, para a procissão da Sexta-Feira da Paixão. Prega-se então numa cruz: os ombros da figura foram articulados para permitir a extensão lateral dos braços. A partir de 1993, contudo, começou a produzir-se um fato extraordinário: aquela figura de milho pôs-se a crescer, a ponto de provocar a ruptura do cristal de vidro da urna em que, deitada, a encerram permanentemente. Terá crescido mais de 30 centímetros, talvez mesmo cerca de meio metro. Sua cabeça já não pode manter-se encostada no fundo da urna. Construiu-se um anexo para os pés —medi com meus próprios palmos esse anexo que supera os 45 centímetros. Olhei o quanto pude qual com os propositados olhos do apóstolo S. Tomé.
Mas como é isso? Por qual virtude a estátua se pôs a crescer depois de mais de 400 anos de estabilidade corpórea? O padre Gonzalez, prudentemente, registrou que o grande milagre é a vinda contínua de fiéis à pequena Tzintzuntzan, é a animação fervorosa das almas do lugar, os guardiões do Templo de la Soledad. Mas não sabe, nem pode explicar por que a estátua cresceu tão harmonicamente: as pernas, ambas, os pés, os dois, de maneira ordenada, guardando proporção com o crescimento do restante da massa corpórea. A figura resultante não é a de um Cristo surrealista, modernista, mas a de um Cristo gigantesco, de mais de dois metros de altura, cujos traços perceptíveis são os de uma figura fisicamente harmoniosa, sofrida embora com a Paixão.
Não sei eu dizer —quem é um pobre camponês para julgar mais largamente do que seus calçados?— se a figura do ‘Cristo que cresce’ cresce por ação natural, preternatural ou sobrenatural. Testemunhas dignas relataram-me o crescimento. Sinais exteriores o indiciam. E que o resultado é harmonioso, proporcional, isto o digo eu porque o vi, e o vi, como disse, com prudentes olhos de S.Tomé. Trouxe comigo um escapulário, presente do Padre Gonzalez —a quem agradeci com uma Ave-Maria—, e bebi meia caneca da água benta que se guarda em moringas postas aos pés do Cristo de milho.
Um equívoco na interpretação gestual
A interpretação jurídica —eminentemente prática— não se limita a textos escritos. Há normas que se extraem de símbolos orais (ex.: as ordens judiciárias em uma sessão do Tribunal), fônicos (v.g., os apitos de um guarda de trânsito), iconográficos (assim, as placas), luminosos (no semáforo, ou nas emissões comunicativas entre navios etc.).
Há também normas aferidas de gestos. SANTIAGO NINO refere-se, por exemplo, à norma que o pai ensina ao filho que há de depor o chapéu ao ingressar nas igrejas.
A extração da norma objeto de gestos apresenta problemas interessantes de interpretação. Dou-lhes disso um exemplo sobre o qual tive a ocasião de meditar em quadro mais amplo.
De comum, outrora, antes do tergiversante Concílio pastoral Vaticano II, o sacrário costumava situar-se no centro do altar, ponto natural de convergência das atenções sensórias. Instalada a crise por que ainda passa atualmente a Igreja Católica (: a militante, nota bene) —crise que seus próprios Papas vez por outra reconhecem—, muitas igrejas passaram a ubiquar o tabernáculo em sítios laterais. Até aí, assunto primacial de arquitetura de interiores (mas, convenhamos, também, quodammodo, envolvendo questões de Fé —que não deixam de ser assunto de arquitetura de interiores…; ou seja, não se trata já do aforismo lex orandi, lex credendi, mas deste outro: lex ponendi, lex credendi).
Era também comum, outrora, que os católicos, com reverência, nas igrejas, genuflectissem no sentido do sacrário, em testemunho e homenagem ao objeto de sua Fé na Presença Real de JESUS CRISTO. Com a deslocação arquitetônica do sacrário, em tantos casos, para lugares laterais das igrejas, coisa curiosa se vê: alguns católicos continuam a ajoelhar-se na direção do centro do altar, onde antes era dominante a localização do relicário.
Assim, a norma apreendida por esses católicos não foi a da genuflexão reverente ao Cristo em Presença Sacramentada, mas, isto sim, a de genuflectir para o (centro do) altar. Já tive ocasião de, numa igreja em A***, permanecer largo tempo a verificar a freqüente prática de uma genuflexão para o altar vazio, ao passo em que os saudadores não reverenciavam o sacrário situado perifericamente.
Não surpreende, diante desse equívoco interpretativo, cada vez mais comumente, ver católicos que permanecem sentados —mulheres, jovens, crianças e homens feitos, estes (com perdão!) tomando ares de matronas desanimadas— durante a repartição da Sagrada Forma. É de recear que, para eles, a Presença Eucarística não pareça mais do que uma simples presença espiritual, ou figurada, metafórica, comparável, assim o disse ROMANO AMERIO, à presença de Beethoven em uma de suas sonatas.
A Hermenêutica: a amplitude de seu objeto
(Estátua de IBN H'AZM, em Sevilha, Espanha)
Ressalvadas as fronteiras do que excede a capacidade intelectiva dos homens (refiro-me aos saberes inapreensíveis e os irraciocinados por superioridade; p.ex.: DEUS e os Mistérios da Fé, que, nesta vida, se conhecem, analógica e imperfeitamente: como se estivessem sob um véu), tudo o mais do universo é amplamente suscetível de um progressivo e direto conhecimento humano. É fácil ver que a amplidão do objeto desse conhecimento não corresponde ao somatório dos segmentos autônomos (é um tanto impróprio falar aí em autonomia) das várias Hermenêuticas instituídas. Mas pode pensar-se em uma amplíssima Hermenêutica geral. Não só muito extensa senão que também antiga.
Tomem, por ilustração, o excerto seqüente, extraído de O colar da pomba: tratado sobre o amor e os amantes (Tawq al-Hamama), do cordobês islâmico IBN H'AZM (994-1063 ou 1064). Vejam que se trata de uma investigação sobre sinais, os sinais do amor:
"O amor tem sinais que o homem arguto busca e que um observador inteligente pode desvelar.
O primeiro desses sinais é a insistência do olhar, porque os olhos são a grande porta da alma, que permite ver-lhe o interior, revelando-lhe a intimidade e acusando-lhe os segredos.
Verás, desse modo, que o amante, quando olha, não pisca; move seu olhar aonde se move o ente amado, aparta-se aonde ele se aparta, inclina-se aonde ele se inclina...".
O texto (até aí, uma sugestão inaugural de ciência e arte da interpretação de olhares), poderia ser um ponto de partida para uma heurística do amor. É interessante relacioná-lo com o stil nuovo de DANTE e com o RAMON LLUL de Blanquerna e do Llibre de Amic e Amat.
Para uma hermenêutica realista
Ainda, os cultores e executores do Direito, estamos a saldar o trágico preço do irracionalismo normativista. Persiste, malgrado a fulminação teórica dos supostos ideológicos de KELSEN, o fascínio reducionista de a hermenêutica ser uma arte de "interpretação das leis". Não parece muito visível a afirmação de um mundo real que interesse aos juristas, ocupados de adivinhar as letrinhas de seu mundo encarcerado. Sucumbem muitos ao drama de acolher, quanta vez sem consciência disto, que é um pressuposto ideológico (o do normativismo de Kelsen) o obstáculo à aferição dos pressupostos ideológicos dos diferentes sistemas e métodos do Direito. O discurso kelseniano, irracionalista, é um discurso de clausura de todos os discursos adversos.
Redescobri um texto de AFONSO BOTELHO. Já o reinventei às dezenas. Está em seu Teoria do Amor e da Morte. Diz BOTELHO:
"Não nos admiremos (...) que o Amor se degrade e se anule tão facilmente entre os homens, nem nos escandalizemos se essa anulação estiver prevista, regulada e promovida na constituição dos povos". (Abro aqui um parêntese para juntar um excerto seqüente desse autor, ao afirmar, com maestria: "desde que o homem é homem ... a mulher sua justificação de amar").
Texto admirável! Pode, efetivamente, dar-se que leis aparentes degradem a realidade, confrontem o amor dos homens, maltratem o amor de DEUS. Não serão verdadeiras leis, antes corrupção delas. Não importa que estejam grafadas nas constituições. Elas passam, DEUS, bem o advertiu um político hispânico, DEUS não morre.
A verdadeira hermenêutica é ciência e arte de interpretar a inteira realidade. É ciência e arte de desvelar "o ser encanto ser" (nas palavras de AFONSO BOTELHO), num movimento ingressivo no mysterium de cada ser. Inventa-se o nomen, desvenda-se o sinal, para ingressar no numen íntimo das coisas. Ir ao ser, apreender a realidade: esse é o núcleo de uma hermenêutica realista.
LUIZ TENAGLIA EM SÃO PAULO
O "Theatro São Pedro", na Rua Barra Funda, em São Paulo, teve hoje, 6 de agosto de 2006, um dia musical superlativo. Ali esteve o tenor brasileiro, que ora anda a viver na Suécia, LUIZ TENAGLIA (na foto acima, de 1985, em Kaiserslautern). Com o piano de FERNANDO TOMIMURA, Luiz interpretou inicialmente cinco melodias populares gregas, de RAVEL, uma peça melancólica do cancioneiro sueco (Tonerma, de SJÖBERG), duas obras de MENDELSSONH e outras duas de SCHUBERT. Ao fim, depois de uma feliz conjunção dos pianistas TOMIMURA e SAID TUMA, concertando, em quatro mãos, as Três Danças Eslavas de DVORAK, com eles voltou LUIZ TENAGLIA ao palco, desta feita, na companhia de ELAYNE CASEHR (soprano), a carioca ADRIANA CLYS (mezzo-soprano), CARLOS EDUARDO BASTOS (baixo) e o Coral Jovem do Estado, para, sob a regência precisa e simpática de NAOMI MUNAKATA, desfiar 18 valsas de BRAHMS (Liebeslieder).
LUIZ TENAGLIA é um dos maiores tenores brasileiros de todos os tempos, senão o melhor tenor de nossa História. Provavelmente, está em seu superior estádio, conjugando uma técnica vocal impecável (isso ele sempre demonstrou ao largo de sua carreira) a um excelente domínio cênico.
Torna ele a apresentar-se entre nós no curso do mês de agosto. É audição imperdível. Este blog indicará, oportunamente, locais e datas.
(Pequena referência biográfica: nascido em maio de 1956, na cidade de São Paulo, LUIZ TENAGLIA, que muito jovem integrou o CORALUSP, então regido pelo Maestro BENITO JUAREZ, iniciou seus estudos de canto com o Maestro MARCEL KLASS. Já na Alemanha, estudou na Escola Superior de Música de Munique, na classe do Professor HANNO BLASCHKE e do tenor ERNST HAEFLIGER. Apresentou-se freqüentemente na Europa com, entre outros, a English Chamber Orchestra, a Sinfônica de Düsseldorf, a Orquestra de Câmara de Karlsruhe, o Collegium Musicum Bonn e a Filarmônica de Munique. Destacam-se suas participações em Il Barbiere, de ROSSINI, 1984; Cosi fan tutte, de MOZART, 1986; Il Turco in Italia, de ROSSINI, 1987; Die Zauberflötte, de MOZART, 1988; La Cenenterola, de ROSSINI, 1992; Don Giovanni, de MOZART, 1999. Mais indicações em http://www.tenaglia.se).
O AMOR DO STIL NUOVO E O EROS PLATÔNICO
Não se nega a presença de perigos (e LUGONES, ao revés, chega positivamente a referi-los como "pecaminosos riesgos") no amor cortês da Vita Nuova, o que não levou a Igreja, entretanto, a condenar a Doutrina do Perfeito Amor, sabiamente avistando a conveniência da cortesia desse amor com a honestidade de sua expressão. Os riscos, sem embargo, são irrefutáveis, e a biografia de LUGONES dá-nos, a propósito, um gráfico exemplo. Uma inquisitiva autora contemporânea viu no amor cortês um forma de "adultério potencial". Crítica perfeitamente dispensável: onde já não haveria esse risco de passagem da potência ao ato pecaminoso do homem pós-adâmico?
Mais interpelante, contudo, é o acercamento entre o amor da Vita Nuova e o amor platônico.
Deixando de lado a circunstância de que, na linguagem vulgar, a expressão "amor platônico" abrange uma amplitude de significados impróprios (: amor distante, amor espiritual, amor romântico etc.), devemos assinalar a clave do eros platônico na imanência de um amor curvado sobre si próprio, o puro desejo sem objeto, a apetência idealista da reconquista da Bondade pretérita. Vale dizer, o amor platônico é uma espécie de amor do amor, que ascende sem repartir-se. É uma recusa do pecado original concertada com a busca do Paraíso perdido. De maneira diversa, o amor do stil nuovo é transcendente, dirige-se a outro, cujos dons busca apreender e fomentar; descende, reparte-se; seu objeto não é o próprio amor mas o bem do amado. Por isso, o amor da Doutrina é construtivo: a mulher civiliza. O amor platônico, estéril, um amor "qui se dévore lui-même, apparenté à la mort" (ETIENNE COUVERT, no imperdível La gnose contre la foi, Chiré enMontreuil, ed. de Chiré, 1989, tomo II).
O que não há, no amor do dolce stil, é o decaimento do amor na esfera reduzida do sexo, a que o amor, na ideologia freudiana, se viu tragicamente resumido.
VIKTOR FRANKL compendiou muito acertadamente: "Normalmente o sexo é uma forma de expressão do amor. O sexo está justificado, até mesmo santificado, na medida em que é veículo do amor, e só nessa medida. Assim, o amor não se entende como um simples efeito secundário do sexo, senão que o sexo se considera um meio para expressar a experiência dessa fusão absoluta e definitiva que é o amor".
Se o amor da Vita Nuova dantesco ou da concepção lulliana exige os estados heróicos da continência não é porque haja recusa da vida ou da repartição de dons, mas exatamente porque, e na medida em que, na variada gradação dos amores há, em tantos casos, o impedimento moral de uma expressão sexual. Ou isso ou já não será possível pensarmos em coisas tão eméritas qual o amor dos pais por seus filhos, dos filhos por seus pais, o amor entre os amigos, até mesmo (em grau de indefinida elevação) o culto de hiperdulia mariana.
É que sempre haveria um freudista de plantão a dizer-nos que esses amores não passariam de sublimação de impulsos e instintos sexuais...
CAVALEIRO E TROVADOR, TROVADOR E CAVALEIRO
Las Cantigas de Santa María, do Rei ALFONSO, EL SABIO
LUGONES destaca no texto da Vita Nuova de DANTE uma impressiva nota do heroísmo exigido do cavaleiro. É que no décimo-nono parágrafo da Vita, DANTE disse que os olhos são o princípio, e a boca, o fim (meta) do amor: "…deli occhi, li quale sono principio d’amore; …la bocca, laquale è fine d’amore". Todavia, observou LUGONES, nesse "máximo poema de amor (…) no hay en él un beso siquiera".
Esse heroísmo do cavaleiro que venera (quase cultua) a mulher amada, qual, no helenismo ateniense, se reverenciava a deusa Atena, e que, no cristianismo, chegará ao ápice do culto mariano, remata numa exaltação de ilimitada generosidade, a reabilitação da mulher, que passa a ocupar o papel impulsionador da Cavalaria, da cristianíssima Cavalaria. "A Cavalaria, diz LUGONES, foi uma das formas eminentes de (…) colaboração com Deus", porque, na concepção lugoniana, o heroísmo, o amor e a generosidade são expressões, de modo respectivo, das virtudes teologias da fé, da esperança e da caridade. Por isso, concertadas entre si, essas virtudes concedem à mulher do stil nuovo"es la mujer quien civiliza". um emérito papel gerador:
O cavaleiro não é só cruzado. É trovador: a Cavalaria, esse prodígio da Cristandade, é também realização poética. Trovar é encontrar. Encontrar o Amor Perfeito, o estado místico desse amor próprio de heróis. Não é por menos, dirá LUGONES, que, grandes homens do século XIII, "supremo en su esplendor", foram também grandes poetas: assim, Inocêncio III, Alfonso o Sábio, S.Francisco de Assis e S.Tomás de Aquino. O trovador é o cavaleiro do ideal civilizador da Cristandade. O cavaleiro é o trovador da beleza íntegra da mulher amada, a mulher, quase à espartana, senhora da Cortesia, que exige a pureza do heroísmo, a peleja pela justiça, em troca não mais do que um sorriso e uma saudação (la bocca è fine d'amore).